quinta-feira, 25 de abril de 2024

Nossas ideias, propostas e utopias envelheceram? Um diálogo com Frei Betto.

Artigo de Flávio Lazzarin*

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Jovens protestando em defesa do meio ambiente | Foto: Canva


"Foram-se as inserções no meio popular e as luta por vida e dignidade, e sobrou somente uma narrativa, cada vez mais ideológica e sem capacidade de seduzir e convencer as novas gerações?"

Eis o artigo. 

Caro frei Betto, li com atenção e interesse as considerações que fizeste após o 12º Encontro Nacional do Movimento Fé e Política, em Belo Horizonte 5-7 de abril de 2024.

É verdade: a nossa geração envelheceu, mas, diante de tantos cabelos brancos, que caracterizam os eventos que reúnem quem ainda acredita e aposta numa caminhada libertadora, nos perguntamos justamente se também nossas ideias, propostas e utopias envelheceram junto conosco.

Em suma: se foram as inserções no meio popular e as lutas por vida e dignidade e sobrou somente uma narrativa, cada vez mais ideológica e sem capacidade de seduzir e convencer as novas gerações?

Frequentemente, numa séria perspectiva autocrítica, me parece descobrir na nossa trajetória uma tendência a repetir práticas pastorais e políticas, que já deram certo, mas que não correspondem mais às silenciosas e prepotentes demandas que surgem da realidade social.

Assim nas nossas mãos inermes e paralisadas sobram só os discursos, que nos obstinamos a chamar de profecias. A história mudou e mudou também a gente, mas, às vezes, nos isolamos numa redoma opaca e embaçada.

A história mudou certamente quando, em três décadas de inverno eclesial, os legados proféticos do Vaticano II e de Medellín – “o novo jeito de toda a Igreja ser” – foram varridos do panorama eclesial em toda América Latina e confinaram na clandestinidade a pastoral libertadora. Traição restauracionista, que não foi fruto somente da cumplicidade clerical e que se reapresenta hoje, inspiradora e aliada do neofascismo, na pequena primavera do solitário papa Francisco.

Mas pensar em lamentações intereclesiais é, com certeza, um equívoco imperdoável. Seria muito simplório ignorar todas as transformações da sociedade brasileira nestes últimos cinquenta anos. Não se trata somente de mudanças de superfície devido às maquiagens modernizadoras do mercado, do consumo, das novas tecnologias: a televisão, num primeiro momento, e a revolução digital sucessivamente.

A avalanche das mudanças históricas – fala-se hoje, apropriadamente, de mudança de época – atingiu sobretudo e irreversivelmente as subjetividades, as emoções, os sentimentos, as mentalidades, os pensamentos das pessoas.

Desconhecer as mudanças não significa somente renunciar a entender a realidade, mas, sobretudo, sabotar a construção de autênticas relações humanas e eclesiais. E renunciar ao discernimento pastoral. E renunciar ao discernimento político.

Parece-me que, nestas últimas três décadas, o nosso sonho político foi progressivamente transformado, com a substituição de antigos atores e a irrupção de novos protagonistas no cenário das lutas populares.

Mudaram também as inspirações ideológicas e espirituais: o papel das teologias da libertação e o testemunho profético de bispos e comunidades de base, que enfrentavam a ditadura empresarial-militar, passou a ser realizado pela insurgência dos povos originários, quilombolas, ribeirinhos, comunidades rurais e urbanas, que ressuscitam retomadas não só de territórios, mas também de espiritualidades e ancestralidades. Lutas minoritárias e frágeis, mas indiscutíveis profecias existenciais, que denunciam os males da nossa crise civilizacional e apontam para estratégias de salvação da vida e da humanidade. Pequenos rebanhos, sobras de uma luta que nos parecia ser bem maior. Sementes.

Em suma, sem querer absolutamente esquecer o irrepetível testemunho fecundo da fidelidade dos nossos profetas e mártires da libertação, hoje o carisma da profecia não está mais confinado em âmbito eclesial e se encontra na prática e na palavra de figuras como Davi Kopenava Yanomami e Nego Bispo.

Devo te dizer também que estou parcialmente de acordo contigo quando afirmas que “a queda do Muro de Berlim abalou as nossas esperanças em um mundo onde todos teriam a sua existência dignamente”. Com certeza é o surpreendente evento central do século passado, que não somente reembaralhou as cartas mas trocou o próprio baralho e as regras do jogo da história, mas as tragédias da atualidade revelam que esta crise irreversível, crise que não pode ser imputada simplesmente às ingenuidades e equívocos políticos da nossa geração, é a crise do Ocidente, de que, pelo avesso, nós também, na Abya Ayala, fazemos parte.

Trata-se de outros “pecados originários”, que nos levaram novamente para novas guerras, fundamentalismos e fascismos.

Assistimos assim aos capítulos finais do processo de derrota das presunções iluministas de governar o mundo e resolver todos os seus problemas em alternativa radical às superstições religiosas. A promessa do triunfo da razão contra os absolutismos dos impérios e das cristandades não se realizou e, em vez, de solucionar contradições e conflitos, chegou-se a multiplicá-los, até ameaçando de morte a própria vida da Terra.

Claro, portanto, que a culpa não é da nossa geração dos cabelos brancos, embora não possamos fugir da ontologia ocidental que marcou as nossas biografias. E não se trata também de um mero conflito entre velhas e novas gerações. Reduzir a crise à biologia ou ao tamanho das nossas pobres biografias não pode ser atitude aceitável.

Não posso esquecer que a laicidade do Estado seria algo de ainda precioso da herança revolucionária de 1789, mas esta concepção está sendo varrida, também no Brasil. Os defensores do Estado de direito, da democracia, do espirito republicano estão ab immemorabili obrigados a se orientar nas eleições guiados pelo princípio do mal menor e não do bem possível. E, mais do que isto, tenho a impressão que as pessoas, que no mundo tentam viver ética e, politicamente, a serviço da fraternidade e da justiça, também são candidatas a serem eliminadas. São e serão tidas como ‘danos colaterais’ de um sistema de imperialismos concorrentes, em que a própria esquerda é obsoleta, dividida e impotente.

E a nossa Igreja Católica tão orgânica à civilização ocidental? Acredito que não possa fingir que a crise do Ocidente não lhe diga respeito.

Ela não conseguirá embaralhar novamente as cartas para participar do jogo, mas a nossa Igreja pode encontrar em Jesus de Nazaré o segredo para enfrentar os poderes violentos deste mundo: a kenosis, o divino extremo esvaziamento da humanidade de Jesus, que nos apresenta um Deus fraco, impotente, sem autoridade. Kenosis que se identifica com ágape, revelada em plenitude na crucificação. Ágape que derrota definitivamente e sem violência até as violências das religiões.

Um abraço fraterno,

Flávio, presbítero fidei donum.

* Flávio Lazzarin, presbítero Fidei Donum, italiano, atua na diocese de Coroatá, no Maranhão.

 Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/638813-nossas-ideias-propostas-e-utopias-envelheceram-um-dialogo-com-frei-betto-artigo-de-flavio-lazzarin?utm_campaign=newsletter_ihu__25-04-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

terça-feira, 23 de abril de 2024

É inútil falar de evangélicos progressistas

Juliano Spyer*

 

 31° Marcha para Jesus, em 2023 - Rubens Cavallari/Folhapress

Antropóloga propõe alternativa engenhosa para classificar protestantes no campo político

Nos faltam palavras para analisar com precisão o que interessa à sociedade sobre o campo evangélico. O leitor não especialista desconhece termos como neopentecostal, renovado ou reformado. Resta-nos, no debate público, classificar os evangélicos como conservadores e progressistas para examinar temas complexos, como a influência da moral religiosa na produção de livros didáticos.

O problema é que conservador e progressista são conceitos vagos. Por exemplo, como classificar igrejas inclusivas, que acolhem cristãos LGBT mas mantêm uma posição contrária ao restante da agenda progressista? O que dizer de evangélicos que votam em candidatos de esquerda, sendo conservadores no âmbito moral? E qual é a utilidade de falar em progressistas quando o número de evangélicos que defendem pautas como a legalização das drogas ou do aborto —me refiro a evangélicos no campo popular— é inexpressivo? Por esses motivos, hoje, "progressista" e "conservador" são usados como sinônimos para evangélicos "do bem" ou "do mal". Precisamos ampliar esse vocabulário.

A antropóloga Christina Vital da Cunha, da UFF, propõe uma solução para abrir esse debate no artigo "Evangélicos críticos no Brasil: Uma Análise Sociológica". Ela chama de "críticos" o subgrupo que é conservador nos costumes, mas se diferencia de fundamentalistas, que são aqueles que leem a Bíblia de maneira literal, como verdade inquestionável. Para fundamentalistas, por exemplo, se a Bíblia diz que apenas pessoas casadas podem se relacionar sexualmente, essa é a verdade. Se a Bíblia não faz referência a racismo, quer dizer que o tema não é relevante. O crítico, por outro lado, enxerga a Bíblia como um texto a ser interpretado à luz do entendimento presente. Por isso, ele ou ela é mais receptivo ao debate com outros setores da sociedade.


Segundo essa proposta, o evangélico crítico também se contrapõe ao fundamentalista por ser comprometido com justiça social, ambiental, democracia e direitos das minorias, podendo se orientar entre partidos de centro, centro esquerda e esquerda nas eleições. Apesar de geralmente não participarem de campanhas políticas, os líderes críticos questionam práticas fundamentalistas e ideologicamente gravitam entre liberalismo, social-democracia e socialismo.

Falar em "fundamentalistas" e "críticos" é produtivo, também, porque são termos pluridenominacionais. Eles independem da afiliação com uma igreja.

A solução de Christina entende a necessidade de ter conceitos simples para substituir "progressista" e "conservador". E cria uma alternativa a partir da noção de fundamentalismo, que é suficientemente clara. É uma proposta engenhosa e útil.

* Antropólogo, autor de "Povo de Deus" (Geração 2020), criador do Observatório Evangélico e sócio da consultoria Nosotros 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/juliano-spyer/2024/04/e-inutil-falar-de-evangelicos-progressistas.shtml?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=newscolunista


Uma Mulher

Leonardo Neiva

 

  Trecho de livro

Livro da vencedora do Nobel Annie Ernaux parte do luto pela morte da mãe para resgatar a história daquela que foi a mulher mais importante da sua vida      


Pouco após a morte da mãe e todos os trâmites relacionados a ela — do inventário dos poucos pertences no hospital onde ficou internada à compra de flores e ao enterro em si —, Annie Ernaux começou a escrever. “Minha mãe morreu na segunda-feira”, narra logo na primeira linha de “Uma Mulher” (Fósforo, 2024), último livro da escritora francesa vencedora do Nobel a aportar aqui no Brasil. Mais tarde, ela admite na própria obra que levou três semanas para superar o terror de se ver botando essas poucas palavras no topo de uma folha em branco.

Assim como no aclamado “O Lugar” (Fósforo, 2021), onde recompôs a vida e a trajetória do pai, aqui Ernaux dá tratamento semelhante à história da mãe, “a única mulher que realmente importou para mim” e que “estava demente havia dois anos”. Continuando sua jornada pela autossociobiografia, gênero que fundou e que ajudou a consagrá-la, a autora explica que, embora, para ela, a mãe não tenha história própria, já que sempre esteve ali, o livro busca retratar a mulher real, num registro familiar e social, mítico e histórico, literário mas também abaixo da literatura.

Assim como em obras anteriores, a escritora parte de uma linguagem aparentemente neutra e do estilo conciso mas pungente ao qual seus leitores já estão acostumados. Com isso vai reunindo as peças que compõem essa mulher da classe operária, da adolescência à velhice e viuvez, quando a convivência com a filha escancara o distanciamento gerado pela ascensão social desta. O luto pela perda materna também se infiltra de maneira irremediável na narrativa, transformando a escrita ocasionalmente seca de Ernaux numa avalanche de memórias pessoais por vezes alegres, por vezes profundamente dolorosas, mas nunca indiferentes.


Na semana seguinte, passei a chorar em qualquer lugar. Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta. Tinha sonhos pesados, mas não me lembrava de nada, apenas que ela estava neles, e morta. Eu não fazia nada além do necessário para viver, compras, comida, roupa na máquina de lavar. Muitas vezes esquecia a sequência de cada coisa, depois de descascar os legumes eu parava, só emendando o gesto seguinte — lavar os alimentos — depois de um esforço de reflexão. Ler era impossível. Uma vez, desci ao porão e a mala da minha mãe estava lá, com a carteira dela, uma bolsa colorida e lenços dentro. Fiquei prostrada diante da mala aberta. Quando me encontrava fora de casa, na cidade, era pior. Estava dirigindo e, de repente: “ela nunca mais estará em lugar nenhum do mundo”. Não conseguia mais entender o modo como as pessoas se comportavam, a atenção minuciosa no açougue, quando escolhiam determinado corte de carne, era para mim um horror.

Pouco a pouco esse estado vai desaparecendo. Ainda sinto uma satisfação ao perceber que o tempo continua frio e chuvoso, como no início do mês, quando minha mãe estava viva. E instantes de vazio a cada vez em que eu constato “não vale mais a pena” ou “não preciso mais” (fazer isso ou aquilo por ela). Alguns pensamentos deixam um buraco em mim: pela primeira vez, ela não vai ver a primavera. (Sentir a partir de agora a força das frases comuns e até mesmo dos clichês.)

Amanhã completam-se três semanas do dia do enterro. Só anteontem consegui superar o terror de escrever no alto de uma folha em branco, como o começo de um livro, e não de uma carta a alguém, “minha mãe morreu”. Também consegui olhar algumas de suas fotos. Numa delas, à beira do Sena, ela estava sentada com as pernas dobradas. É uma imagem em preto e branco, mas é como se eu visse os cabelos ruivos dela, os reflexos de seu blazer de alpaca preta.

Ao acordar, sabia que minha mãe estava morta

Vou continuar escrevendo sobre a minha mãe. Ela é a única mulher que realmente importou para mim e estava demente havia dois anos. Talvez eu devesse esperar que a doença e a morte dela se dissolvessem no percurso passado da minha vida, como os outros acontecimentos, a morte do meu pai e a minha separação, de modo que eu pudesse ganhar a distância que facilita a análise das lembranças. Mas nesse momento não sou capaz de fazer outra coisa.

É uma empreitada difícil. Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui. Ao falar dela, meu primeiro movimento é fixá-la em imagens que não trazem uma dimensão temporal: “ela era agressiva”, “era uma mulher muito intensa”, e evocar de modo desordenado cenas em que ela aparecia. Assim, só encontro a mulher do meu imaginário, a mesma que, há alguns dias, em meus sonhos, vejo outra vez viva, sem idade definida, num ambiente de tensão que lembra filmes angustiantes. Gostaria de capturar também a mulher que existiu fora de mim, a mulher real, nascida num bairro rural de um vilarejo na Normandia e falecida na unidade geriátrica de um hospital no subúrbio de Paris. O que eu espero escrever de mais exato se situa, sem dúvida, na articulação entre o familiar e o social, o mito e a história. Meu projeto é de natureza literária, pois trata de buscar uma verdade sobre a minha mãe que só pode ser alcançada por meio das palavras. (Ou seja, nem as fotos, nem minhas lembranças, nem os testemunhos da família podem me dar esta verdade.) Mas quero permanecer, de certa forma, abaixo da literatura.

Yvetot é uma cidade fria, construída sobre um planalto exposto ao vento, entre Rouen e o Havre. No começo do século, era o centro comercial e administrativo de uma região totalmente agrícola e ficava nas mãos de grandes proprietários. Meu avô, carroceiro numa fazenda, e minha avó, que trabalhava em casa como tecelã, se instalaram ali alguns anos depois de se casarem. Os dois vinham de um vilarejo vizinho, a três quilômetros dali. Alugaram uma casinha com pátio, do outro lado da estrada de ferro, na periferia, uma zona rural de limites indefinidos, entre os últimos bares perto da estação e as primeiras plantações de colza. Minha mãe nasceu lá, em 1906, a quarta de seis filhos. (Ela tinha orgulho em dizer: “eu não nasci no campo”.)

Para mim, minha mãe não tem história. Ela sempre esteve aqui.

  • Uma Mulher
  • Annie Ernaux (trad. Marília Garcia)
  • Fósforo
  • 64 páginas

Fonte:  https://gamarevista.uol.com.br/cultura/trecho-de-livro/uma-mulher/?utm_medium=Email&utm_source=NLGama&utm_campaign=MelhorGama 19/04/2024